quarta-feira, maio 31, 2006

A bola mora ao lado

“Não há homens absolutamente bons, do mesmo modo que não os há absolutamente maus, ou delinquentes congénitos; por isso mesmo é possível, ao contrário do que pretendia Schopenhauer, uma modificação do carácter, ensinando a experiência que, mediante sério esforço, muitos o conseguem.”

Nelson Hungria Hoffbauer


À semelhança do que vai acontecer com os professores, nós também avaliamos e somos avaliados. Não duma forma colegial do termo mas apenas para saber como estamos. Quer em moldes físicos (é importantíssima a saúde num local como este), quer no panorama psicológico. Para isso nada melhor do que estar em constante actividade.

Sobre isso tenho a dizer que, ao contrário do que se possa pensar, não temos uma vida completamente ociosa e o lazer é limitado em horários disciplinados. As actividades laborais prendem-nos igualmente. Claro que não abrange toda a população do presídio. Há os “perigosos” que, como o próprio adjectivo indica, estão retidos demasiadas horas devido ao óbvio.

De qualquer forma, a iniciação a este contacto virtual, se alterações residenciais não fizessem, já produziu alguns efeitos em moldes comportamentais. Para além da “novidade”, redescobriu-se um perímetro que se julgava não poder chegar: a contracultura.
Quantos sabiam da existência de Jack Welch, ou de Eduardo Lourenço, ou de Samuel Beckett? Quem se atreveria a ser possível sair à noite "conduzindo" um Google Earth a ouvir Axl Rose ou Red Hot Chili Peppers?

“Podemos fazer mais!”, é o sentimento geral de todo este tempo que nos sobra. E certo é que os diálogos de caserna já não absorvem tantas atenções às novas armas e a “projectos” que, invariavelmente, farão voltar os indefectíveis a tais planos.

À oportunidade que o Director nos deu, o devemos. A todos os que por aqui vão passando, também.
A teamgeist está agora do nosso lado. Ficamos gratos.

terça-feira, maio 30, 2006

Coisas levadas da breca

“eu, que sou nada, então fora um gigante:
porque ele é todo alma e simpatia,
compreende o riso e a dor, o mal e o bem.
mas se ele é do meu nada! tão distante,
em vão eu sonho trazê-lo ao dia,
ser grande... em vão! e... quem és tu?
- ninguém!"

José Régio


No universo prisional é fácil constatar sem qualquer surpresa a forma como são vistos no exterior os presos de delito comum: como escória.
De nada me vale ser hipócrita quanto a isso, e mesmo que vários estudos psicanalíticos sobre criminologia possa deixar transparecer algumas atenuantes para desculpar comportamentos criminosos, na esmagadora maioria dos nossos casos somos culpados e pronto.
No entanto, como em todas as medalhas, há um lado menos visível da questão; saber porque reagimos aos determinados acontecimentos que nos desgraçaram a vida, é um deles. A necessidade de diferenciar as razões poderia ser outro.
É que, num cenário completamente diferente, não estou a ver o nosso homem do jardim, pessoa de uma sensibilidade estonteante, descarregar à queima-roupa um tambor de calibre proibido em três dos seus vizinhos.
Quem possuirá o monopólio da verdade absoluta?

segunda-feira, maio 29, 2006

Depressão

"O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo"

Albert Camus


Tentar ser sintético num blogue como este não é fácil quando está provado que a vida de um recluso é demasiadamente curta em relação às estatísticas que nos dão vários anos como certos.
No caso do X. P., é indiferente. A vida dele poderia resumir-se em trinta segundos ou em três séculos, consoante a importância que podemos dar às coisas simples, garantiram-me ontem dois advogados, netos dele, no dia mais importante da vida prisional: o domingo.
A roçar os sessenta anos, ninguém duvida que estamos perante mais um erro judiciário ao falar com ele. Homem de fino trato e cultura bastante para nos perdermos de admiração. No entanto, a pena é comprida demais para tentar provar a inocência.
Um dia destes, ao escutar no silêncio da noite o esticar de uma corda presa à viga, pode ser o fim do erudito.



ps – uma das regras assentes para a continuação deste espaço é não ter diálogo directo com as visitas. De qualquer forma, todos os comentários são divulgados na caserna. Obrigado.

sábado, maio 27, 2006

Esparsos (1)

- Então, man?
Ouvir esta pergunta a um matulão preto com mais de cento e trinta quilos, condenado por homicídio em primeiro grau, às duas da manhã dentro da minha própria cela, arrepia qualquer um. De duas situações prováveis, só uma me pode safar: satisfazer a curiosidade da questão. A outra, provavelmente, estaria dezenas de dias sem abrir a boca, se tivesse sorte.
- O que foi, pá? - tentei defensivamente salvaguardar-me , baseado no meu estatuto privilegiado de ter a cela aberta a esta hora.
- Os gajos?
Percebi logo nesse primeiro tique do que se tratava, e já verifiquei que todas as alas estão de olhos postos em respostas a esta experiência de ter um blogue enclausurado.
Neste lugar onde não crescem magnólias, é oportuno ser-se rápido no pensamento e ainda mais ágil no atrevimento.
- Tem calma, meu. Já temos feed back, que queres que eu faça mais?
- Diz-lhes que existimos, cabrão!

(É o que vou tentar fazer. Não sei é como.)

quinta-feira, maio 25, 2006

Pena de morte

"A tragédia do homem, cadáver adiado, como lhe chamou Fernando Pessoa, não necessita dum remate extemporâneo no palco. É tensa bastante para dispensar um fim artificial, gizado por magarefes, megalómanos, potentados, racismos e ortodoxias. Por isso, humanos que somos, exijamos de forma inequívoca que seja dado a todos os povos um código de humanidade. Um código que garanta a cada cidadão o direito de morrer a sua própria morte".

Miguel Torga



"Na generalidade, um crime é um acto que viola as regras estabelecidas porque constitui ofensa, dano ou perigo a um bem ou à vida como valor social" (Wikipédia). No entanto, há crimes e crimes que a sociedade julga em moldes diferenciados.
Até nós por aqui, enclausurados por os termos cometido.
Quanto a mim, o pior deles é sem dúvida o assassinato/violação de crianças. Nenhum condenado é bem visto aos nossos olhos, mesmo que o arrependimento esteja exposto de forma inequívoca. É uma mancha que jamais se apagará da memória de todos quanto do caso tiveram conhecimento.

Julgo saber, por entrevistas e diálogos extemporâneos, que a reimplantação da pena capital terá adeptos.
Será a voz da raiva e fúria a manifestar-se, ou, antes pelo contrário, essa expiação dos crimes graves cometidos seria de pleno direito exercido pelos familiares das vítimas?

terça-feira, maio 16, 2006

Afinidades

É fácil constatar que, sendo o único presidiário com um blogue, estarei limitado a informações adjacentes no que diz respeito ao funcionamento do cárcere que me alberga. Apenas posso adiantar que faço parte de um Programa, talvez um teste à capacidade de resposta dos meios prisionais à possível reintegração na sociedade dos que se pretendem reabilitar.
Parece discurso de director prisional, mas não é. Levo anos suficientes de presídio para saber o que escrevo.
De qualquer forma, o tempo que me permite estar no sistema bloguístico já deu para perceber que existem muitas semelhanças entre nós, os cá de dentro, e os outros, os aí de fora. A única diferença é que nós cumprimos pena, enquanto os outros relatam a sua.
É giro sentir-me em casa.

domingo, maio 14, 2006

Criminologia

"Subiu para 32 o número de mortos na onda de ataques organizados pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) contra as forças de segurança de São Paulo. Os atentados começaram na noite de sexta-feira (12) em diversos pontos da cidade e municípios do Estado."

Folha de São Paulo




Que diriam os criminologistas se o caso se passasse nas prisões portuguesas?
Um estudo que falta dissertar na sociedade.


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domingo, maio 07, 2006

Mãe...

“O dia é de tédio e eu procuro meios e modos de fugir dele, de voltar-me para mim mesmo e examinar-me. Não posso e sofro. Arrependo-me de tudo, de não ter sido outro, de não seguir os caminhos batidos e esperar que tivesse sucesso, onde todos os outros fracassaram.”
Graciliano Ramos

Neste espaço de recolhimento obrigatório, o nosso pior inimigo é o tempo. Horas e dias a fio que a maioria dos reclusos não distingue nem importa. As preocupações são nenhumas que o próprio sistema ajuda a fomentar.
Tenho a sorte da curiosidade comigo; uma biblioteca antiga e gasta que me permite ultrapassar os dias que passam a fio e devagar, enriquecendo pensamentos de bolsos vazios. Devo-to a ti.
Depois transfiro os resultados neste espaço. Apenas recortados pelo ressonar do companheiro desta diminuta cela fria e a lembrança de te pedir desculpa, Mãe.


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quinta-feira, maio 04, 2006

Causa e efeito

"Aqui onde, arquejando, estou curvado
à lei, pesada lei, que me agrilhoa,
de lúgubres ideias se povoa
meu triste pensamento horrorizado."

Bocage




Olho de soslaio pelas grades o portão de entrada onde estará prestes a tocar o sinal da próxima refeição.
À nossa mesa vai sentar-se um puto novo, “agarrado” na encruzilhada da vida de má-sorte.

Assustado que está, nota-se nos seus olhos a “primeira vez”: será mais uma vida perdida pelos corredores compridos que esfriam estas paredes?

Ainda não sabe a pena que lhe calhou nem o que lhe reserva as próximas semanas, mas a importância do primeiro dia será vital.


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quarta-feira, maio 03, 2006

A fuga

«Eu bem queria poupar-me ao suicídio; mas desde há algum tempo que pressenti a necessidade desta evasiva...»
Camilo Castelo Branco

Este espaço vai também ser a minha fuga.
Talvez o testemunho tardio de um arrependimento.