Na penumbra da noite
Temos por hábito sermos filhos do nocturno, o outro Zeus dos crentes deste Olimpo que é só nosso. Originários de dias em que se não dorme, para arquitectar planos para que na noite seguinte podermos manter todos os sentidos em alerta.
Qualquer deslize pode ser a morte do artista. É da praxe e ganha forma.
Em qualquer biblioteca itinerante, ou até mesmo na nossa que não é móvel, encontramos nos mestres do sonambulismo literário (Sócrates, Aristóteles ou Platão) indicações de que a forma de agir e de pensar livremente se faz melhor à noite. Depois de uma lauta refeição de carne guisada de origem desconhecida, bem regada com sumos sem corantes onde as ideias e estratagemas possam fluir de modo mais conveniente, lá vamos nós para mais uma sessão do reflectir "orgulhosamente sós" sem sermos do tempo da "outra senhora". Antes pelo contrário.
Daí, o transmitir sem autorização, mas com uma enorme carga de cumplicidade, alguns bilhetes que me aparecem sob a porta da minha cela sempre aberta.
“Fui criado à revelia e de forma agreste e alterada. Órfão do país que me criou e padrinho daqueles a quem a triste sina de ser pobre sacrificou. Fiz o que fiz e não me arrependo.”
Nuno “Star”, seis anos de penitência que recusa advogado
“Escreve lá, e diz a esses gajos que não esqueçam que, alguns de nós que estamos presos, demos o coirão por Portugal e a forma de nos pagarem foi a de nos mandarem p’ró caralho. Tentei sempre ser honesto mas houve um dia…”
Júlio “Pára”, ex-combatente da Guerra Colonial – condenado por assaltos vários à mão armada
“Quando violaram a minha filha nem olhei p’ra trás. Gastei o meu último ordenado na arma onde gastei os últimos cartuchos. Ganhei os anos que sabes, mas fodi o filho da puta! O que é que tu fazias?”
Paulo “Ás”, condenado por homicídio premeditado
8 Comments:
Caro Zé.
Tomei a liberdade de o linkar.
Um abraço
Quero dizer alguma coisa inteligente, mas não me sai nada. Desculpa. Bolas... Só me saiem as tretas do costume:
Que é na dificuldade que as grandes pessoas se revelam...
Que há os que se entregam e os que continuam a lutar...
Que há os que insistem em ver o sol, mesmo através das grades...
Mais uma vez desculpa! Mas já deu para perceber que amei, respeitei... (ou não?)
E, de certo há sempre aquele momento, que se escapa pelo meio dos dedos, que todos podemos deixar escapar uma vez, mas depois já é tarde... (imagino!)
Força! Continua a fazer a diferença. Estou certa que o que fazes é importante para muita gente. E obrigada pela partilha!
Mestres do sonambulismo é das definições mais brilhantes que alguma vez ouvi acerca dos filósofos mencionados... que grande provocação que esta sua reflexão é para qaunkquer ser pensante acordado!
Até sempre!
... qualquer!
Zé, a penumbra da noite são das horas mais gratificantes para quem quer pensar livremente, como bem dizes. Nada daquelas de abanar o capacete e andar a realizar outros disparates.
Podes até verificar que até os próprios bloggers vip escrevem mais à noite. Os poetas e fadistas também.
A noite é o refúgio de quem não quer estar sózinho. Daí eu perceber os bilhetes que te colocam sob a porta da tua cela.
Que por sorte ou acaso, está sempre aberta.
Tal como a tua/vossa disponibildade perante a legitimidade desta inter-comunicação virtual.
saddam, o dos fados
Gostei do que li aqui e também da música que ouvi. Pergunto-me senão seremos todos prisioneiros das opções que tomamos. Pessoalmente sinto inquietações. Sinto a falta de liberdade na medida em que a dos outros não respeita a minha. O medo de me readaptar quando tudo isto que conheço se desmoronar....
Tenho medo de sair do meu cárcere, apesar das humilhações e da revolta.
Adicionei um link ao meu blog. Obrigada pela partilha
Eu acho que somos todos um bocado prisioneiros das nossas próprias opções. Falo de mim, também.
Oh Zé Prisas, a coisa é complexa: eu não sou uma santinha; sou boa pessoa, mas vivo muito de impulsos, e isso é mau. É mau porque muita da asneirada que se faz, a mais compreensível também, faz-se por impulso (por isso é que a lei pune mais o premeditado!), o que significa que nada me garante que eu não possa um dia vir a passar-me dos carretos e bater com os costados na prisa. Bato na madeira, mas a verdade é a verdade. Agora, também lhe digo, os erros são erros e tem de se assumir. Sim, levámos porrada na infância, sim não nos deram oportunidades, sim violaram os nossos filhos (e, porra, não imagina o que me custa esta última!) mas não nos desculpabilizemos totalmente. Se há uma culpa, enfrentemo-la, mesmo que não sejamos os únicos culpados, os totais culpados. Mas também não somos os totais inocentes.
Fazemos a asneira e depois convém admiti-la para se poder viver dentro de nós, para se poder avançar.
Gostava que contasse melhor a história do Nuno Star, ou que me desse um link para os arquivos, caso a tenha já contado. Diga ao Júlio Pára, por mim, que tem razão, que merecia ter tido apoio depois de dar o coirão como acredito que deu, mas que não pode ficar a lamentar isso o resto da vida e a fazer merda. Chega de merda. Merda na tropa, merda o resto da vida não pode ser. Diga por mim ao Paulo Ás que por muito que compreenda a sua dor, e me sinta solidária com ele, e mesmo não sabendo se não teria o impulso de fazer o mesmo, o que ele fez foi errado: não sarou a filha e roubou a vida que era cara a outros, e uma morte é algo demasiado pesado para se carregar. O que ele matou teve fim mais feliz. Sim, eliminou a sociedade de um parasita, mas, na essência, o Paulo cometeu de facto, um crime.
Não quero ser moralista, sabe. Quero mesmo só dizer que compreendo as pessoas, que compreendo que se erre, porque eu erro, todos erram, mas que acho que devemos assumir e andar para a frente.
Desculpe lá se isto é só teoria de um idealista que não faz ideia do que seja viver na prisão. Tenho o máximo respeito por quem tem de penar, coonsciente.
tens aí em cima, machos ou fêmeas, um monte de gente que te manda amor; os machos são pró envergonhados já se sabe, mas também não fica bem de outra maneira...
Essa Isabela é corajosa.
Eu então, imagina, ando atrás dessas janelas que postaste, já as encontrei em Marrocos, em Timor, em Moçambique, no Brasil, e ainda não percebi se isso é traça lusa ou um artefacto universal.
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