Testemunhos (3)
Por aqui, se vão quebrando barreiras e tabus. Soltam-se as palavras amarradas de quem esteve, e está, calado há muito tempo. E este espaço vai-se tornando um veículo para os testemunhos dos que por aqui pernoitam dias sem fim. Este é mais um grito surdo para se poder ouvir.
"Mesmo detido, vivo num país de facilidades. Quase tão igual ao do “sonho americano”.
Como recluso, sobrevivo com facilidades várias. Facilidades que utilizo como moeda de troca. Como alvará ou salvo-conduto nestes caminhos que se percorrem por estes corredores estreitos e vazios. Por estas celas frias e cinzentas.
Dão-me a facilidade de ler e de estudar.
Sendo um condenado, sobra-me a facilidade de aprender com quem me ajuda e me castiga.
Facilitam-me as artes e os engenhos, dos quais cantou Camões, e tenho a facilidade de perceber que não estarei sozinho entre tão poucos escravos e tanta tirania.
Facilitam-me as refeições a tempo e horas, e um descanso obrigatório que torna livre o pensamento no cavalgar sobre os prados da minha própria vida. Passada e futura.
Facilitam-me a vida, mas nunca a morte prematura que, por vezes, facilitaria menos dor e tormentos nas amarras de quem me facilita tanta coisa. Serei um pesado fardo a tanta facilidade, mas nunca saberei se é fácil viver com isso durante todo o tempo que nunca me restará.
Apenas me falta acreditar num deus que não exista.
Ou rezar a outro que me facilite a possibilidade de entender que não valeu a pena o ter vivido assim."
João Almerindo, o "à queima-roupa", condenado a pena máxima.